Em 1990 a Editora Abril
publicou no Brasil a reformulação de um dos personagens tradicionais da DC
Comics, O Gavião Negro. A reformulação foi conseqüência de uma daqueles famosos
reboots de universo que a DC gosta tanto. No entando, esse reboot de personagem
nos brindou com uma das melhores histórias já criadas e com uma série de referências
político-literárias que nos trazem diversas facetas da sociedade que podem ser analisas
e trazidas para nosso “mundo real”, seja o passado ou o nosso presente.
Quando falamos em Gavião Negro, já
falamos de uma reformulação. Existiu o Falcão da Noite, que depois de
reformulado, se tornou o Gavião Negro. Ambos tem o nome original de Hawkman.
Falcão da Noite foi criado pelo
escritor de ficção científica Gardner Fox, juntamente com o desenhista Dennis
Neville, na revista Flash Comics 01 de janeiro de 1940. Fox produziu a
maioria dos roteiros enquanto a série durou mas dividiu a tarefa com Bob
Kanigher e foi desenhado por nomes conhecidos da área como Sheldon Moldolf e
Joe Kubert. Este Hawkman é contenporâneo do primeiro Flash, Jay Garrick, o Joel
Ciclone, e do primeiro Lanterna Verde, Alan Scott, hoje reformulado nos novos
52 e gerando polêmica pela sua homossexualidade.
Na edição 64 de The Brave and The
Bold, de março de 1964, surge o novo Hawkman, o Gavião Negro, o policial Katar
Hol do planeta Thanagar, que decide adotar a terra como lar, assumindo a identidade
civil de Carter Hall, juntamente com sua parceira e esposa Shayera, a
Mulher-Gavião, mais uma vez com arte de Joe Kubert. Com o teste de poparidade,
ganhou revista própria que durou 27 edições, muitas delas com arte de Murphy
Anderson.
Joe Kubert (18 de setembro de 1926, Polônia - 12 de agosto de 2012) |
A série nos apresenta o Alferes
Katar Hol em seu primeiro dia como membro da Divisão dos Homens Alados do
Planeta Thanagar, a a força policial local. Percebe-se já nessa primeira seqüência
o choque do jovem bem-nascido que escolhe o que seria para sua família, já que é
filho de um importante cientista e membro da aristocracia local, uma colocação
menor. Essa escolha o descreve como o jovem idealista que busca a glória do
passado honrado que criou e difundiu Thanagar como uma civilização interplanetária
que se torna um império vasto, que domina direta ou indiretamente, centenas de
mundos, seja por força militar ou econômica.
A constatação da pobreza da
cidade baixa, onde vivem os extra planetários, os que podemos classificar de
classes abaixo da linha da pobreza, contraposta a visão dos thanagarianos
dominantes em suas altas torres, começa a mudar a percepção de mundo de Katar
Hol e o questionamento de seu próprio papel nessa sociedade quase parasitária.
Não por acaso, o choque do combate e da pobreza pode ser compara a experiência
do personagem de Charlie Sheen no filme Platoon, onde o personagem descreve
suas experiências de vida e combate para sua avó.
O personagem Comandante Byth
descreve bem isso em sua fala:
- Você vem de um mundo perfeito,
Katar Hol... o mundo das torres altas... o mundo do alado. Aquele lugar não tem
crime, nem fome, nem sofrimento... é repleto de paz e prosperidade, beleza e
contentamento. O sagrado Thanagar... o imperial Thanagar... pai dos planetas,
mestre dos mundos. Pra você e seus amigos aristocratas, a vida sempre foi um
banquete. Aposto que, quando sentiu necessidade de deixar a mesa para ir ao
banheiro, você nunca se perguntou onde desembocava o cano da privada. Nunca se
perguntou quem pagava o preço pelo seu mundo perfeito, Katar Hol?
Tudo isso nos leva a idéia de impérios.
Thanagar é um império vasto e como todo império, sua identidade se perde em sua
vastidão. Tudo vem de fora, da colônias, dos aliados, dos conquistados. Uma
clara alusão a isso é feita pelo próprio Katar Hol:
- Bom... é que, as vezes, nós
parecemos até esquecer quem somos. Olhe ao redor... músicos lylianos tocando
canções carangianas com instrumentos illoranos. Vinho extra planetário em taças
de quartzito de Altaires 3. Decoração feita por algum janota de Ortem 7... até
as mesas tem forma extra planetária, montadas numa fábrica extra planetária,
trazidas para cá por alguma frota alienígena. (...) Meu pai é o último dos
grandes artífices thanagarianos. Um inventor... um cientista. Ele elaborou as
asas que usamos no dia-a-dia. Na verdade, elas são o único traço de identidade
que temos.
E com esses contrastes, Katar Hol
começa a observar a maneira como seus pares aristocratas tratam os extra planetários,
a classe baixa.
E é impossível não traçar
paralelo histórico com o Império Romano, os colonizadores do Novo Mundo, o
Império Britânico e atualmente o papel semelhante dos Estados Unidos. Este
último, inclusive, claramente retratado nas naves militares, cujos cockpits são
inspirados nos do AH-64 Apache, helicóptero símbolo do poderio militar nos anos
80 que vivia a destruir miríades de tanques na primeira Guerra do Golfo em
1991, desmistificando de vez o fantasma do fracasso estadunidense no sudeste
asiático nos anos 70.
Em verdade, é comum a crítica aos
impérios através de alegorias, seja como Timothy Truman fez magistralmente em Gavião Negro ou na
forma como H. G. Wells fez seu A Guerra
dos Mundos, criticando o sistema colonial britânico. Essa crítica é muito
transparente em Gavião
Negro, observado o já citado Comandante Byth.
Impérios são
cíclicos e, por si mesmos, entrópicos. É um sistema e como nos diz a Teoria
Geral de Sistemas, todos os sistemas tendem ao caos. Impérios totalitaristas
tendem a caminhar mais rapidamente ao caos pois precisam de estrema ordem para
operar seus meios de repressão e controle, o que gera corrupção e desigualdade,
alimentando a insatisfação. Juntando isso a um sistema colonial extremamente
brutal e unilateral, a insatisfação se torna revolta, que se torna a chama da
revolução que gira a roda do sistema social viciado criado pelo próprio
império. A máquina gira contra si mesma. E o sistema continua. A inversão dos
papéis pode acontecer e levar até mais de uma geração para sua perversão. Como
o sábio Capitão Nascimento disse, o sistema trabalha para resolver os problemas
do sistema.
O primeiro volume traz um relato
de parte da história de Thanagar narrado pelo próprio Katar Hol e essa história
é um claro reflexo, ou um chamado à reflexão, do que ainda está por vir, um
possível, talvez inevitável, futuro agonizante para Thanagar, que nasceu do
agonizante império Polarano pelas mãos do herói Kalmoran.
Shayera Thal: O que é isso?
Katar Hol: Kalmoran. Eles não
retiraram.
ST: Seu herói lendário. O que
esta estátua está fazendo aqui?
KH: Kalmoran nasceu nestas ilhas
aquando Thanagar era um mundo escravo de Polaran. Foi aqui que ele morreu.
Dizem que Kalmoran viveu a maior parte de sua vida como escravo. Certo dia,
matou seu carcereiro e fugiu. Quando voltou, estava encabeçando um exército...
três mil soldados. Os homens atacaram a guarnição polarana, tomaram suas naves
e investiram contra os mundos escravos. Planeta após planeta, o império foi
todo arrasado. Ele não tinha interesse em governar os mundos polaranos, mas fez
o possível para manter todos a salvo. Kalmoran veio para cá e ergueu uma linda
cidade. Um dia, quando estava muito velho, o herói voltou para estas ilhas com
a mulher que escolheu como rainha. Ele se deitou nos braços dela sobre a relva,
olhou para tudo que construiu e depois morreu.
Aqui temos a referencia do escravo
que supera seu senhor, uma clara referencia ao Spartacus de Howrd Fast, o
romance que virou filme e humanizou o escravo que liderou a rebelião que pôs
Roma em polvorosa em 73 a.C., com a diferença que o herói Kalmoran conseguiu
vencer o império que o escravizou. O poder da vontade.
Na seqüencia da história, o
alferes Hol é envolvido por seu comandante em uma trama política que o torna
assassino de seu próprio pai, acusado injustamente de fazer parte de uma
conspiração terrorista revolucionária que, no fim, era alimentada pelo próprio
comandante Byth. Na verdade Paran Katar era ativista pró-extraplanetários, tentando
elvar remédios e alimentos para os oprimidos. O alferes é condenado em um
julgamento sumário e seu relato nos remonta diretamente a uma seqüencia de O
Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas.
“A Ilha da Chance é uma colônia
penal... um lugar de exílio. Tem sido assim desde o tempo de Kalmoran. Não há
como deixar a ilha. Uma rede invisível de defesa mantém afastadas as naves não
autorizadas. A distância do continente torna o nado impossível. Mesmo que um
barco fosse construído, não há como escapar. Os sharakus garantem isso. Poucos
thanagarianos sabem que este lugar ainda existe, mas é assim que as coisas
devem ser, pois a Ilha da Chance é para aqueles que devem ser esquecidos.”
A Ilha da chance é o Castelo D’If
de Katar Hol. E como nosso herói de Dumas, é lá, também, que ele encontrará seu
mestre. È mais uma das máximas do mito do herói: o protagonista deve descer às
profundezas e, com auxílio de seu tutor, mestre, o preceptor, se erguer mais
forte, sábio e preparado.
Mas Katar Hol é agora alguém que
purga o assassinato do pai, luta contra a abstinência das drogas que consumia
em seu ambiente, drogas estas que lembram os calmantes e estimulantes que tão
alegre e abertamente a sociedade moderna consome para encarar seus dias de
trabalho e suas frustrações. É um homem em remissão. E junto a ele existem mais
dois exilados. Um deles começa a juntar um galho a penas perdidas das aves
marinhas em um arremedo de asas (ainda o único traço cultural thanagariano na
opinião de Hol) e seu intimo ferve de raiva pelas asas que perdeu. Ao velho
terminar seu trabalho, Hol o assassina violentamente para possuir as asas,
apenas para descobrir depois que as asas eram para si e não para uma fuga: o
próprio velho pertencia a uma raça alada.
Esta é, talvez, a mais dura e
trágica parte de toda a história, pois foi um assassinato a sangue frio por
parte do herói por um motivo torpe que, na verdade, nunca existiu. E isso
apenas aumenta o fardo das ações a serem remidas.
E quando se passam 10 anos e o
velho restante que estava lá apenas por ser inteligente e sábio demais para
conviver com os outros extraplanetário, morre, restando apenas o já maduro Katar
Hol, que é resgatado de seu exílio, deixando os desajeitados recrutas
incumbidos de leva-lo de volta surpresos por ainda estar vivo. E o deixam na
cidade baixa, sem asas. Agora o aristocrata é caça, igualado à ralé e ao
submundo, preso a chão... sem as asas que tornam o thanagariano o que é.
E dessa forma, assume o posto que
fora de seu pai e torna-se um agente benfeitor, um contrabandista do bem. Por
que não, um Paulo Apóstolo? Aquele que era opressor dos não cidadãos e que
acaba por ser um deles.
A conclusão da história leva ao
confronto do herói e do vilão, claro. Mas isso acontece de forma rápida, pois é
claro na história que não é esse o matiz principal dessa obra. Não é destino na
batalha, mas a viagem que o herói precisa fazer para lá chegar. O caminho se
torna mais importante em si que o destino final. Por isso a história é superior
a muitos “similares” que valorizam demais a confrontação com o agente externo
sendo que o que torna o personagem rico são seus conflitos internos, suas dores
e suas tragédias. A história de cada um de nós, na verdade, não contada pelas
cicatrizes de nossas quedas em nosso corpo, mas as cicatrizes de nossa alma, em
cada frustração e perda, em cada lição aprendida.
Por isso, a história do
thanagariano acaba por ser uma das histórias de super-heróis mais humana já
contada.