segunda-feira, 14 de março de 2016

Lúcifer



 Sempre um coadjuvante da história e da religião, o Diabo sempre foi um artifício literário e um vilão a ser derrotado, suprema antítese de tudo que é bom. O pai da mentira, o senhor da discórdia. Não preciso contar a origem de Satanás, todo mundo deve saber de onde vem O Adversário. Mas vamos contar quem é este Lúcifer da Vertigo, a linha adulta da DC Comics, vindo diretamente das páginas de Sandman, de Neil Gaiman.

Lúcifer e Morpheus
Ele é apresentado inicialmente no primeiro arco de histórias, quando Morpheus vai a Inferno para recuperar um de seus objetos de poder que foi tomado por um demônio em uma barganha com um mortal. O caso todo é conduzido de maneira magnifica e se percebe um estado quase diplomático, embora cheio de animosidade, entre o Senhor dos Sonhos e o Senhor do Inferno. Daí por diante, Lúcifer é um coadjuvante da história quando Oneiros, muito mais tarde, volta ao Inferno para buscar um antigo amor que ele mesmo condenou à danação. Chegando pronto para uma batalha com Lúcifer, este o surpreende lhe entregando as chaves do Inferno e lhe pedindo para que corte suas asas. E tudo isso porque se cansou de ser o Lorde dos Condenados, o Senhor das Moscas. Milênios da mesmice e do enfado de punir os culpados de gerenciar as bólgias dos condenados. 

Então, Lúcifer se vai e deixa o abacaxi gigante que o Inferno é nas mãos de Morpheus que, agora, precisa decidir o que fazer com ele. Mas isso é outra história. Daí surgiu a Graphic Novel Morte - A Festa, onde as irmãs de Morpheus tem que lidar com as almas que não tem para onde ir enquanto o Inferno está fechado. E segue a história das deidades e outros demônios cortejando Morpheus para se apoderar do Inferno, um lugar que representa poder, um lugar que garante ao seu rei status e poder. Até mesmo Odin e seus filhos comparecem ao evento onde Morpheus decidirá a quem entregará a chave. No fim, dois anjos enviados por Deus acabam assumindo a tarefa, meio a contragosto, já que para os anjos o inferno é um lugar abjeto. 

Mas o que aconteceu a Lúcifer? Para onde foi Satanás? Passou um tempo editorial antes de ganhar uma série própria e sabermos o seu destino: Lúcifer vai para Los Angeles e abre uma distinta casa noturna, a Lux, onde como dono e pianista, passa dias tocando sucessos do jazz e outras coisas que ele aprendeu a gostar com os humanos. Posteriormente, em sua série de quadrinhos própria, o Diabo surge como alguém que se procura para fazer serviços sujos, tanto no mundo físico quanto no mundo espiritual,  que outros não gostariam de fazer. E o primeiro trabalho foi o próprio Pai que solicitou que se torna uma bela jornada xamãnica.

Vários dos paralelos da série de quadrinhos e a série televisiva acabam por aí. Outros, se mantém fortemente. 

Como um poderoso ser sobrenatural imortal e milenar, nos quadrinhos ele nutre desprezo pela humanidade, por suas mazelas e o desperdício que ele enxerga nessa parte da obra do Pai. De certa forma, ao acompanhar a maneira como o personagem enxerga a humanidade, você até concorda com ele. Afinal, quando ele observa que os filhos de Adão não dão valor ao silêncio, como discordar? É um profundo conhecedor da capacidade humana de enganar, mentir e cobiçar, o que o ajuda a alcançar sua metas antevendo passos que os gananciosos dariam. Aquela máxima de que as vítimas de estelionato são, na verdade, vítimas se si mesmos e da vontade de se dar bem. Ele usa magia, antiga e nova, artifícios mágicos e o conhecimento de adquiriu em eras geológicas de misticismo em todas as suas formas, como um mago supremo que acumulou conhecimento infindável para compensar sua falta de onisciência. Sim, Satã não vê e nem sabe de tudo.

Na TV, Lúcifer Morningstar é vivido pelo ator galês Tom Ellis, dando um delicioso sotaque britânico a um personagem que você não consegue mais imaginar sem esse jeito esnobe de falar. Temos um Lúcifer charmoso, lascivo e bon vivant, que, ao contrário de sua versão dos quadrinhos e, talvez por um dos produtores da série ser o mesmo de Californication, adora sexo, bebidas, drogas e diversão ao extremo. Talvez isso seja um dos maiores atrativos da série para o grande público, já que o apelo policial da série é corriqueiro para aqueles que acompanham o gênero, existindo episódios nos quais já percebemos o desfecho do caso já no meio do episódio. Fica sempre a curiosidade sobre o que vai ser feito por Lúcifer e como se desenvolverá a dinâmica entre ele e a detetive Chloe Decker, vivida pela bela Lauren German.

Lúcifer e seu "olhar de penitência"
O Lúcifer da TV parece, por vezes, um estranho em nosso mundo, demorando para descobrir como certos mecanismos funcionam, ao contrário de sua versão impressa que espera sempre o pior dos mortais. Chega a, por vezes, beirar a ingenuidade, o que gera uma divertida dicotomia no Diabo. Satã vai fazer terapia (com a Dra. Linda, vivida por Rachel Harris) e começa a se descobrir e percebemos o que eu sempre disse sobre o Diabo: é um filho que tem sérios problemas com o Pai. Tem seus momentos hilários, cheios do egocentrismo, desdém e sua soberba. Sim, temos um Diabo que desconhece a modéstia ou a humildade e isso é ótimo. E tudo isso com um charme que beira o efeminado, lembrando muito um arremedo de Oscar Wide, como um tipo de charme dandi.

Dra. Linda, a psicóloga do Diabo
Mas há um quê ali que atende à questão da rebeldia de Samael, o protetor da luz, aquele que acendia sóis para Deus antes de se rebelar, eras geológicas atrás, como ele mesmo gosta de definir. Fica mais claro na série do que nos quadrinhos que Lúcifer deixa suas obrigações no inferno por reconhecer que sua queda, na verdade, atendia tão somente a mais um desígnio de Deus. Deixar o inferno é a rebeldia suprema por deixar um cargo no qual ainda executava a vontade de Deus. Em muitos casos, Lúcifer se refere ao seu período gerenciando o inferno como um funcionário público que abandonou a repartição e o carimbar monótono. Entendamos que tudo isso parecer ser o preço do livre arbítrio, já podemos perceber, aí, que Samael foi o primeiro anjo a sair do programa, a exercer sua própria vontade em vez de seguir a vontade de Deus e assim, mesmo que ele não reconheça, mas fica muito patente na série, se igualar aos humanos. De certa forma, o próprio Lúcifer entende que ele é melhor que os mortais pois o livre arbítrio foi algo que ele conquistou, lutou e perdeu muito para ter, enquanto nós nascemos livres e não damos valor a isso.

A face de Satã para os culpados e pecadores
Embora nossa sociedade ocidental tenha hoje muito do arquétipo miltoniano de Satanás, a visão Vertigo acaba por quebrar esse paradigma de personificação extrema do mal para o paradigma de um ser em crise e ressentido, que tem mais desdém do que ódio pela humanidade e que decidiu que não precisa tentar as almas para que se lancem ao inferno. Na verdade há casos de diálogos básicos de "o que eu faria com a sua alma?" e "nunca mais voltarei para um lugar onde esse mortais vão passar a eternidade em auto-punição e culpa", lembrando que os maiores responsáveis pelos próprios atos são os próprios humanos, sem necessidade de empurrões maiores. Dessa forma, quebramos um pouco o paradigma miltoniano do Diabo que deseja o fim da humanidade para um que resolveu deixar para lá somente para não fazer mais um trabalho sujo para Deus. Um Tinhoso que acaba entediado em nosso mundo e encontra diversão resolvendo crimes e, assim, fazendo o que quer fazer, se vê como um ser buscando justiça para os outros, buscando culpados e lhes dar a devida punição, em verdadeiros momentos de bancar Deus. Afinal, o que é mais dado ao pecado da soberba senão administrar a justiça e se sentir senhor da vida e da morte, do bem e do mal. Mais do que criador da mentira e da enganação, do embuste e do pecado, Lúcifer sempre será o criador do orgulho e da soberba e, embora na própria série ele negue, suplantar seu complexo de Deus.

Amenadiel
Mazikeen
Personagens que ficaram melhores na TV que nos quadrinhos temos o estranho casal Mazikeen, a demônio que por amor à Lúcifer deixou o inferno com ele jurando sua eterna fidelidade e o anjo Amenadiel. Maze é uma serviçal nos quadrinhos, viciada em tortura com facas e dificuldade de falar pois é desfigurada e usa uma máscara em estilo fantasma da ópera. Na série é vivida por Lesley-Ann Brandt, que você vai lembrar de Spartacus e The Librarians, que faz mais o papel de guardas costas e gerente da Lux, com direito a alguns momentos "ninja" e sua índole de se divertir com sexo. Amenadiel aparece no primeiro arco dos quadrinhos como o mensageiro de Deus para solicitar a Lúcifer cumprir aquela tarefa, um personagem serviçal, com desejo que matar Lúcifer, mas preso pela sua coleira divina de obediência. Na TV, vivido por D.B. Woodside, temos um anjo que tem a missão de levar Lúcifer de volta às suas obrigações no Inferno, com momentos ambíguos de desejo de violência contra Lúcifer e outros de recordação dos tempos antes da rebelião, como um relacionamento de irmãos, embora pareça ter um agenda própria para se livrar de suas obrigações de cobrir a ausência de um rei no inferno.
Mazikeen de Lesley-An Brandt
Amenadiel de D.B. Woodside



Lúcifer e Amenadiel - tretas de família

Detetive Chloe Decker ( Lauren German)
Trixie (Scarlett Estevez)
Mas a relação com a detetive Decker é o que mais afeta Lúcifer, já que ela é imune ao seu charme lascivo que afeta mulheres e homens e ao seu poder de induzir os filhos de Adão e as filhas de Eva a lhe contarem seus mais profundos desejos. Essa imunidade o fascina, o impele a buscar uma proximidade cada vez maior com a detetive e descobrir os motivos de isso acontecer, de saber poque ela é diferente e, dessa forma, descobrir o que mudou dentro de si mesmo. De certa forma, representa a vontade humana de entender e buscar o desconhecido, a curiosidade, outra característica emblemática do livre arbítrio. As participações da filha da detetive, a pequena Trixie,  são uma diversão à parte, principalmente quando ela recita coisas que Lúcifer lhe disse (para terror da mãe) ou quando dá "lições" nos pais. Se você observar com outros olhos e fizer algumas análises, a criança com sua inocência quase nos fornece um ponto de referência ao conhecimento ou desconhecimento de Lúcifer do nosso mundo e mesmo do nosso desconhecimento sobre ele, já que ela não tem uma percepção de Lúcifer como alguém mal, mas um adulto diferente que faz mágica.


Infelizmente, não sabemos se a série terá uma segunda temporada depois de seus 13 primeiros episódios para saber se a série acabará bebendo mais em sua origem impressa e Lúcifer viverá aventuras mais sobrenaturais, jornadas xamãnicas, lutas entre o céu e o inferno e um vislumbre da enorme capacidade de manipulação, mentira, coação e indução, como só o Diabo seria capaz de fazer. Talvez a TV não esteja preparada para essa faceta do Diabo e a decisão de tornar tudo mais mundano e secular, simples e mais fácil de digerir se acertada para garantir a audiência. De qualquer forma, vale conferir e comparar, caso você tenha acesso aos quadrinhos. A Panin lançou um encadernado recentemente e espero que lance o restante. A DC relançou um nova série em dezembro, justamente para aproveitar o lançamento da série de TV. Existem várias edições de partes dos arcos de Lúcifer no Brasil, vale a pena procurar em sebos para saber mais e, claro, você sempre pode violar as regras e baixar da internet.