sábado, 10 de fevereiro de 2018

A Forma do Conto de Fadas




Quando se vai ver um filme da mulher, da princesa, que se apaixona pelo monstro, temos o eterno arquétipo de A Bela e a Fera. Temos vários exemplos disso, incluindo o recente da Disney em que a Hermione virou a Bela. Temos várias corruptelas, conto com tom moderno, como aquele ruinzino que o cara é amaldiçoado com uns filamentos de metal na cara, aquela outra versão francesa e por aí afora vai. Aí você pensa que A Forma da Água é mais uma versão da Bela e a Fera. 

E fica por isso. 

E muda de ideia por lembrar que é um filme de Guillermo del Toro. 


Em seu amor pelos monstros e em sua delicadeza em falar de amor, como se pode ver nos Hellboy que dirigiu, o filme sai daquela curva simples do bonitinho, fica longe de um filme da Disney, flui com leveza sem ser piegas em seu detalhamento e não tem vergonha de ser adulto. Sim um conto de fadas de adultos, uma história de amor sem muitas ingenuidades além da de crer que monstros existem e podemos ama-los. 


Os elementos do arquétipo estão lá: temos a princesa Elisa Esposito, magnificamente interpretada pela inglesa Sally Hawkins que, pasmem, estava em Episódio I. Por princesa entenda uma mulher comum que logo bebê teve ferimentos na garganta que a tornaram muda e que ganha a vida como faxineira em um laboratório do governo dos EUA nos anos 60, em plena Guerra Fria, em meio à luta pelos direitos civis e os mísseis em Cuba, como é sutilmente demonstrado pelas TVs ligadas e os noticiários. A apresentação dela à partir de sua rotina diária é uma bela descrição da monocórdia mesmice e do cultivo de hábitos. Claro que serve para mostrar também que, mesmo na monotonia, é uma pessoa viva.


No lugar de xícaras, candelabros e bules temos uma amiga protetora e falante, Zelda, interpretada por Octavia Spencer, de Estrelas Além do Tempo. A personagem é divertida pelos seus diálogos sobre a vida com o marido Brewster (Martin Roach), que me lembram muitas amigas casadas com maridos assim... tipo o Brewster. Ela cuida de Elisa, segura a fila de bater o ponto, a aconselha e, se Elisa é muda, Zelda fala. E fala. E fala por Elisa também, traduzindo para os outros muito do que Elisa diz. As vezes até suavizando o que Elisa quer dizer. 


Temos também o vizinho desenhista/pintor/artista Giles, em uma delicada interpretação de Richard Jenkins, de quem Elisa cuida para que não esqueça de comer. A homossexualidade dele é discreta como era de se esperar pela época retratada pelo filme, inclusive com as aparentes dores que a vida dentro do armário trazem para um homem culto e sensível que precisava enfrentar preconceitos e ignorância. E mesmo assim, de uma vida com medo, ele acha forças para amparar Elisa tanto quanto ela o ampara. 


O vilão do filme é o General Zod. Não, não o general em si, mas o Agente Strickland, um Michael Shannon suburbano, menos focado que o Zod, mas tão vilanesco quanto. Me surpreende como Shannon interpreta bem o estereótipo do spooky estadunidense, o homem obcecado por sucesso, que tem uma família aparentemente por ser o que os superiores esperam de um homem confiável e, ainda sim, um homem obtuso, sem sutilezas, que trata a criatura somente como um animal a ser dissecado, um meio para um fim que ninguém sabe exatamente qual, somente que é uma vantagem tê-la antes dos soviéticos. Seu personagem incorpora todo o machismo esperado de um homem americano médio da época (e de hoje, também, pois existem muitos assim), tentando ser educado ao falar com outras pessoas somente para tentar se mostrar superior a elas e sempre usando da  imposição de sua patente para conseguir o que quer, sem se preocupar muito se humilha alguém no processo. E mais ainda a atração que ele desenvolve por Elisa, não é pela mulher em si, mas pelo fetiche de possuir uma mulher muda. Strickland se torna abjeto por tudo o que seus preconceitos e mesquinharias representam, não por ser somente um personagem, mas por sabermos que são, talvez, as características mais reais dentre todos os personagens, nos lembrando que temos monstros reais ao nosso redor. 


O Prof. Hoffstetler (que não é Leonard...) interpretado por Michael Stuhlbarg é o tipico homem da ciência, o idealista que acredita que se pode realmente aprender algo com a criatura. É um homem que viu na atividade política um meio de abraçar mais ciência, ir além, mas acaba enredado pela ignorância e brutalidade que o jogo politico impões àqueles que nele estão. Acho que ele seria o bule que ajuda a Bela. Mas sua atuação vai além disso, está mais para um contraponto às ações de Strickland, uma pedra em seu caminho, mesmo que não tenha patente para contrariá-lo. 



E, claro, temos nosso monstro. O monstro, criatura, espécimen, ser, homem anfíbio, é claramente inspirado no clássico Monstro da Lagoa Negra, é uma das obras de arte que Doug Jones sempre nos apresenta. O Sr Saru de Star Trek Discovery nos dá um personagem que não usa palavras. Sim, semana que vem tem resenha de Discovery já que domingo é season finale na CBS e então vamos falar muito de Star Trek. Mas voltando ao monstro... Houve o cuidado em criar a criatura com o maior número possível de efeitos práticos para aumentar a realidade, o que significa um traje de látex que demorou semanas para ter o molde esculpido e depois até mesmo tinta bioluminescente para o detalhamento, além, é claro, de mais de duas horas e meia de preparação para o ator começar a filmar

O homem anfíbio é algo que foi encontrado e trazido da América do Sul para ser estudado, como um trunfo de Strickland e um meio de galgar degraus na hierarquia apresentando resultados para o General Hoyt. 



Não é uma fera que precisa de redenção, ser curada de um feitiço, mas apenas de ajuda real em sua luta pela vida. Afinal, tudo que se pode fazer com uma criatura desse tipo em laboratório será feito até acharem que já tiraram informação da criatura viva para depois saber te mais algo para se saber dela depois de morta. Lembrando que hoje há um questionamento moral do comportamento da ciência diante de novas espécies, vale lembrar que até pouco tempo era praxe fatiar o que se encontrava de novo para saber como é diferente do que já se conhece.






A relação entre Elisa e a criatura acontece de forma simples, como a raposa ensinando o pequeno príncipe sobre laços, mas usando ovos e música. A conquista da confiança da criatura e depois o aprendizado da linguagem de sinais, até um momento em que se percebe que Elisa e a criatura quase se comunicam com os olhos é fascinante.

Esse encontro inusitado do amor, metáfora da nossa busca eterna da pessoa que nos tornará completos ou, pelo menos da pessoa que venha a se somar a nós, é elegante e com cores e luzes que deixam muito claras as mudanças de ambiente. É uma coisa que del Toro faz muito bem: usa a luz como um dos contadores de história. Os tons verdes para o laboratório marcam bem o ponto da história, assim como ótimo uso das sombras. Preste atenção nisso quando vir o filme, tanto quanto na maravilhosa trilha sonora desenvolvida por Alexander Desplat. Temos até Carmem Miranda fazendo uma ponta.

Em suma, é um filme a ser visto, para se deixar seduzir pelos ovos cozidos oferecidos


A Forma da Água (The Shape of Water, EUA, 2017)
Direção de Guillermo del Toro


Elenco:
Sally Hawkins como Elisa Esposito
Michael Shannon como Colonel Richard Strickland
Richard Jenkins como Giles
Doug Jones como Amphibian Man/The Asset
Michael Stuhlbarg como Dr. Robert Hoffstetler/Dimitri Antonovich Mosenkov
Octavia Spencer como Zelda Delilah Fuller
Nick Searcy como General Frank Hoyt
David Hewlett como Fleming
Lauren Lee Smith como Elaine Strickland
Morgan Kelly como the Pie Guy



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